Tradutor

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Verdadeira Valentia Não É Aquela Que Afronta...

  Pai Firmino do Congo
Mensagem recebida em 18 de dezembro de 2006
por Mãe Luzia Nascimento
Dirigente do Centro Espiritualista Luz de Aruanda
Terreiro Filiado ao Centro Espiritualista Caboclo Pery

- Jacobino feitor marvado, um dia te pego na virada. Um dia te mostro que o teu chicote pode inté ferir lombo de negro, mas, que ele jamais tirará a esperança de liberdade para todos esses irmãos de cor que vivemo nessa senzala. Ah! Jacobino tua hora vai chegá e tu vai ter qui fazer a prestação de conta e aí sim, nós vamo nos acertá.
Esses eram meus pensamentos enquanto mais uma vez toda senzala assistia a mais uma sova dada por Jacobino em um dos negros que fora reclamar os maus tratos vividos e do abuso do Comendador Mendonça em querer aliciar sua filha.
Coitado do negro Ernestino, depois de 50 chibatadas ficaria por mais uns dez dias naquele tronco exposto ao sol e a chuva sem direito a pão e nem a água levando todo dia um banho de sal nas costas para jamais esquecer a sua ousadia. Quem já viu alguém tirar satisfações com o senhor Comendador! Nem a sua própria esposa a Sinhá Iolanda ele ouvia. Da casa grande a sinhá a tudo via e ouvia sem nada poder fazer, pelo ao menos naquele instante.
Depois daquela cena monstruosa, todos os negros foram dispersos e eu,Negro Firmino,saí dali com mais raiva ainda daquele feitor. E a voz de meus pensamentos gritava: - Ah! Feitor marvado, mestiço atrevido, um dia te pego. Pego sim! E aí ocê vai ver que negro também é gente! De repente escutei junto a mim uma voz suave que me perguntou:
- Meu fio,onde suncê acha que essa raiva vai te levar? Prá um caminho bom é qui num é! Frimino, Frimino doma esse teu gênio e toma tento! Se tu te vingar, vais parar no tronco tombém iguarzinho a Ernestino e como vai ficar nosso povo? Olha nossas crianças, Frimino! Elas precisam de suncê e num é lá do tronco que ocê vai fazer alguma coisa por elas, é?
Então eu disse:
- Quem é que falando comigo? De onde vem essa voz?
Foi aí que um clarão se fez ao meu lado e eu vi a das Dor, a Maria das Dores, que houvera morrido no tronco. Ela estava ali formosa, mais jovial e com semblante de muita paz.
Perguntei então: - Das Dor, como é que ocê aqui falando comigo se ocê morreu? Eu mesmo junto com os outros te enterrei.
- Ora essa Frimino! Ocês enterraram o corpo, porém ocê esqueceu que o Espírito é imortá? Agora posso ir onde eu quiser aqui no Engenho para ajudar nossos irmãos e o que é melhor, Frimino, feitor nenhum me barra. Frimino meu fio, venho te dizer que tire essas idéias do teu camutué, pois todo esse sofrimento tem uma razão de ser. Nós num sofremo à toa não Frimino e no passado num fumo tão bonzinho assim. Lá em Aruanda, colônia espirituar em que se encontram muitos dos nossos, sempre nos é explicado que nada acontece sem a permissão de Zambi e que tudo que passamos nesse torrão chamado Terra está dentro da lei de causa e efeito.
- Mas qui diacho de lei é essa das Dor, que só dá ganho pro Comendador e prá Jacobino?
- É a lei que vem nos convidar ao ressarcimento dos erros de outrora ,e ao invés de ocê ficar aí praguejando contra eles, vai rogar forças a Pai Ogum e Pai Xangô para que Ernestino suporte com coragem e resignação essa hora de dor. Vai lá no riacho, recolhe água da cachoeira, pega umas palmas de babosa, pisa elas e faz uns ungüentos pra colocar nas costas daquele pobre coitado. Faz uma beberagem da casca da aroeira, do caju roxo e da quixabá e dá pro Ernestino, pois ele ta cum muita dor e a ferida pode infeccionar.
- Mas como Ernestino vai poder tomar isso se ninguém pode se aproximar dele?
-Espera Frimino, a providência divina se fará. Um anjo de luz vai te procurar na calada da noite do lado de fora da senzala para ajudar. A verdadeira valentia não é aquela que afronta, mas é aquela que sabe agir na hora certa, sem ir de encontro à lei maior. Vai Frimino, que o tempo corre.
- Mas das Dor,quando vou te ver de novo?
- Sempre qui eu tiver permissão e trabalho no bem a fazer ou suncê acha que o Espírito vive prá brincar? Conto com ocê Frimino. Agora vou prá junto de quem vai lhe ser de valia.
Mesmo sem querer sair de junto de das Dor, fui fazer o que ela me mandou até porque dispois de nossa conversa ela sumiu. Fiquei do lado de fora da senzala pitando meu cachimbo. A noite já ia alta quando de repente ouvi passos se dirigindo para aquele lugar e uma voz a me chamar:
- Firmino, Firmino! Onde está você?
- Eu estou aqui, respondi.- Quase que caí de susto ao ver a sinhá Iolanda ali.
- Vamos Firmino, Ernestino precisa de nós. Fez tudo o que Maria das Dores lhe orientou?
- Fiz, sim! Mas como é que a sinhá sabe que ela me pediu alguma coisa? A senhora também a viu foi?
- Não Firmino, vê eu não a vi! Porém escutei a voz dela falando comigo e dizendo que você precisaria de minha ajuda para salvar o Ernestino. E aqui estou. Vamos ao trabalho!
- Mas sinhá,o Jacobino deixou os capangas dele vigiando o tronco.
- Não se preocupe, quero ver quem vai desacatar D. Iolanda, a esposa do Comendador Mendonça. Nessa hora Firmino vou me valer dessa minha condição, afinal de contas, também sou senhora aqui.
- E o Comendador sinhá?
- Dorme depois de umas boas taças de Vermouth.
- E quando ele souber?
- Isso é assunto meu, não se preocupe. Vista essa capa e quanto a estar comigo você está cumprindo minhas ordens, pois também exerço direitos sobre você.
Naquela hora vi quanto minha sinhá era realmente um anjo de luz e a um anjo ninguém desobedece e esse negro Firmino estava com minha sinhá para o que desse e viesse.
Ao chegar em frente ao tronco, logo fomos percebidos pelos capatazes que vieram ao nosso encontro, não reconhecendo a sinhá Iolanda.
Ao vê-los, ela disse:
- Desamarrem o negro do tronco, pois vim cuidar dele.
- Senhora Iolanda, não podemos fazer isso. Recebemos ordens do Jacobino de não deixar ninguém mexer nesse negro. Além do mais, o senhor Mendonça não vai gostar de nada disso.
- Realmente - respondeu a sinhá. - O senhor meu marido não vai gostar de saber que vocês afrontaram à senhora desse Engenho, ou será que não perceberam que também mando em vocês? Desamarrem o Ernestino agora! E podem se recolher, pois vocês não acham que ele tem forças suficientes para fugir daqui depois de um tratamento desalmado desses que recebeu?
- E quem é esse que está ao seu lado?
- É o negro Firmino que fui buscar na senzala e está aqui cumprindo minhas ordens. O que vocês estão esperando? Já disse, desamarrem o Ernestino!
- Senhora Iolanda, vamos acatar sua ordem, porém saiba que devemos satisfação a Jacobino e ao Comendador.
- Façam como quiserem. Quanto ao comendador cuido eu.
- Vamos Firmino segure o Ernestino para mim e traga-o para a senzala. Lá, numa esteira, cuidaremos dele melhor. Senhores, tenham uma boa noite.- Essas foram às palavras finais de D. Iolanda.
A prática do curandeirismo entre nós era muito comum e isso era do conhecimento de minha sinhá, que inclusive já houvera se curado várias vezes com o uso das ervas. O pobre do Ernestino não conseguia nem falar de tanta dor, só gemia. Ao olhar para a Sinhá Iolanda lágrimas lhe caiam na face.
Ao chegarmos na senzala, deitei o negro na esteira de bruços, antes lhe dei a beberagem e só depois a sinhá começou a limpar suas costas. Utilizou a água do riacho que eu havia recolhido e depois colocou os ungüentos de babosa. Velou ao lado do Ernestino o resto da noite e antes do dia raiar, retornou a Casa Grande. Porém ao se despedir de todos nós, pois os outros negros acordaram com nossa chegada, ela pediu ao Ernestino que ele não desafiasse mais o Comendador, pois morto ele não seria de nenhuma valia. Me pediu ainda para cuidar de seus curativos, trocando os ungüentos e que mandaria da Casa Grande a alimentação necessária para reerguimento dele, pois tinha perdido muito sangue.
- Sinhá como vai ser quando o sol raiar? Quando o Comendador souber? Temo pela senhora.
- Não se preocupe Firmino, a cada dia o seu próprio problema. Além do mais, meu pai estará chegando para me visitar nessa manhã e eu duvido que o senhor meu marido tente algo contra mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário